Por um método prescritivo de análise do discurso constitucional através do racionalismo discursivo habermasiano
Um pouco de filosofia da linguagem e direito constitucional.
Decidi mesclar meus outros interesses com um tom mais jurídico (que é a minha graduação de origem). Então decidi adaptar este texto, que veio do ambiente acadêmico. Ele é bastante interessante e tenho certeza que mesmo aqueles que não são juristas vão apreciar o tema, que é bastante atual. Talvez eu volte a postar com mais frequência, em razão de ter achado alguns textos interessantes já prontos que eu só preciso adaptar. Veremos.
A pintura acima, “As meninas”, de autoria do espanhol Diego Rodríguez de Silva y Velázquez (1599-1660), é comentada por Michel Foucault em As palavras e as coisas (Les motes et les choses, no original). O primeiro aspecto comentado pelo filósofo é a ambiguidade da figura do pintor. Em que ele está a pensar naquele momento? O que ele inscreve na tela que repousa sobre o cavalete? Ele procura fixar a postura do expectador ou a de seus dois modelos? Como ter certeza de que se compreende corretamente as suas intenções? Assim como Foucault, desejamos adivinhar o que o pintor contempla, se fosse possível olhar a tela à qual ele se dedica, mas percebe-se dela apenas a trama, as travessas horizontais e, na vertical, a oblíqua do cavalete. Eis, então, questões que só a linguagem, isto é, a troca linguística das impressões produzidas nos expectadores, parece capaz de elucidar. Aqui, a linguagem encontra sua vocação clássica de compor um “quadro” ou, para retomar a expressão de Bertrand Russell na introdução do Tractatus logico-philosophicus de Wittgenstein, de afirmar ou negar fatos, de modo a favorecer uma compreensão mútua da realidade do objeto.
Não obstante, o discurso não se restringe à emissão de enunciados constatativos voltados a retratar o universo dos pensamentos ou dos objetos. Desde John Austin, compreende-se que a linguagem possui igualmente um caráter performativo: entre suas atribuições figura produzir efeitos e consumar atos entre interlocutores. Para ilustrar esse aspecto, Austin recorre, em How to Do Things with Words, ao exemplo do “sim, eu quero” pronunciado no próprio rito matrimonial: ao dizê-lo, não se noticia um casamento nem se descreve a ação em curso, tampouco se afirma que o locutor faz bem em proferi-lo. A fórmula “sim, eu quero / eu aceito” apresenta-se, para o público, como um enunciado passível de verificação. Conforme François Recanati, tal enunciação não apenas realiza uma ação (o vínculo matrimonial), mas ainda exerce uma função sui-referencial, indicando reflexivamente o tipo de ato cuja proferição constitui sua própria execução: aqueles que proferem essas palavras tornam-se, a partir de então, cônjuges.
Nessa mesma linha, Sandra Laugier, no artigo Actes de langage et états de choses : Austin et Reinach, compreende os atos de fala como atos sociais. George H. Mead, em The Genesis of the Self and Social Control, já os via como um conjunto de ações coordenadas entre um ou vários indivíduos, cujo objeto, definido pela própria prática, constitui um bem social essencial à vida coletiva. Para Adolf Reinach, em The A Priori Foundations of the Civil Law (obra na qual Laugier se apoia), a comunicação forma uma unidade indissolúvel entre realização e enunciação deliberada, sendo a própria estrutura das relações sociais. Ela também representa uma “colocação em linguagem” do espaço político: uma sobredeterminação do performativo em que a enunciação deixa de ser mera representação do poder ou seu epifenômeno verbal, para se tornar o modo de existência do poder em si, conforme desenvolve Judith Butler em Excitable Speech: A Politics of the Performative. Para o jurista, tal concepção da linguagem revela-se desde logo extremamente valiosa para elucidar os pressupostos comunicacionais que constituem o substrato linguístico de toda norma.
Seria legítimo interpretar a linguagem constitucional como um discurso dotado de singularidade? Sustento, de modo categórico, que sim, apoiando-me na analogia proposta por Wittgenstein no Tractatus logico-philosophicus: “os limites da minha linguagem são os limites do meu mundo”. Para isso, impõe-se destacar o laço ontológico entre linguagem e direito e, em seguida, aprofundá-lo no campo do direito constitucional, de modo a delinear com clareza o seu objeto.
Ao discutir a dimensão performativa dos atos de linguagem, reconheceu-se com Austin que um enunciado se torna performativo quando a fala de um dos interlocutores provoca um efeito nos demais participantes da interação. Cumpre agora sofisticar essa noção: afinal, nem sempre o simples ato de dizer basta para realizar. François Récanati ilustra bem essa exigência. Imagine uma reunião deliberativa: a frase “declaro aberta a sessão” só alcança o resultado pretendido (a abertura da sessão) se for dita por quem detenha autoridade para fazê-lo. Se pronunciada por um espectador, a mesma declaração pode até surtir certo impacto performativo, tal irritação, troça ou risos, dependendo do contexto, mas não consumará a abertura oficial dos trabalhos. O êxito desse enunciado, portanto, depende das chamadas condições de felicidade (felicity conditions) formuladas por Austin na teoria dos atos de fala.
Desta maneira, Alain Berrendonner, autor de Éléments de pragmatique linguistique, percebe que a substituição do dizer pelo fazer só é possível quando existem garantias institucionais capazes de permitir que um enunciado seja sistematicamente seguido de efeito. Aqui, instituição adquire um sentido amplo, como um poder normativo que submete mutuamente os indivíduos a determinadas práticas, sob pena de sanções. Daí ser fácil reconhecer no Direito uma das instituições que melhor incorporam as garantias da linguagem performativa. Pierre Bourdieu, em Ce que parler veut dire. L’économie des échanges linguistiques, observa esse fenômeno com acuidade quando, em suas análises sobre a economia das trocas linguísticas, nota que a performatividade das decisões judiciais depende da existência de instituições geradas pelo direito que conferem à palavra do juiz seu alcance executivo.
I. Linguagem e direito constitucional
É possível afirmar que o enunciado constitucional possui uma dupla performatividade: por um lado, ele gera um Sein, ou seja, um estado de coisas que se desenrola em um universo de valores e fatos contingentes; por outro, inaugura um Sollen, isto é, um conjunto de prescrições normativas. Cumpre agora explicitar o alcance dessa tese e extrair suas implicações à luz da teoria da linguagem.
Costuma-se creditar a David Hume, em seu Tratado sobre a natureza humana, a formulação da distinção básica entre o indicativo do ser e o imperativo do dever-ser. Hume observa que certos enunciados se referem a proposições descritivas -como “a casa é azul” ou “o gato está sobre a árvore” - e, por isso, podem ser racionalmente justificados, ao passo que outros possuem um caráter prescritivo e escapam a qualquer teste de verificação (por exemplo, “você deve comprar uma casa” não é nem verdadeiro nem falso). Conclui-se, assim, que a distinção entre vício e virtude não pode fundamentar-se unicamente nas relações entre objetos, tampouco é captada pela razão.
Hans Kelsen vale-se justamente dessa oposição para sustentar a premissa central de uma fundamentação científica da filosofia do direito: a norma representa um Sollen, enquanto o ato de vontade do qual ela é expressão constitui um Sein. Tomemos a proposição “A deseja que B deva agir de determinada maneira”. A primeira parte (“A deseja que B”) corresponde ao Sein, pois a vontade de A pode ser constatada empiricamente. Já a segunda (“B deve agir de determinada maneira”) é um Sollen: ela só adquire sentido sob a pressuposição de que A efetivamente quer algo. Podemos reformular o enunciado, para torná-lo mais nítido: “B deve agir assim na medida em que A deseja que ele proceda dessa forma”. O grande desafio da Teoria Pura do Direito de Kelsen é justamente explicar e fundamentar essa condição de possibilidade.
A vontade de A pode até oferecer um motivo plausível para descrever o comportamento de B, mas não constitui, por si mesma, uma justificativa da conduta de B. A mera referência ao Sein não basta para esclarecer as razões pelas quais B deve agir de certo modo. Dessa constatação, Kelsen infere que a validade objetiva de uma norma que obriga uma pessoa a agir segundo a vontade subjetiva de outra só pode provir de uma norma adicional. Não cabe, neste ponto, criticar Kelsen pelo seu critério de validação estritamente normativo do sistema jurídico; interessa, sim, apreender as repercussões dessa conclusão no âmbito do direito constitucional.
Quanto a esse tipo específico de enunciado, Kelsen observa que as normas da constituição material só adquirem natureza jurídica em relação às normas dotadas de sanção, das quais são fundamento. Importa reconhecer, pois, que a Constituição engendra, ao mesmo tempo, Sein e Sollen. Primeiro, ela descreve um estado de coisas: expressa um ato de vontade destinado a instituir e estruturar órgãos encarregados de regular a vida social. Segundo, assume força normativa como guia das condutas institucionais, já que outras normas recorrem à sua autoridade para legitimar a própria validade.
Entre os positivistas, costuma-se priorizar a análise do sentido das normas jurídicas. Desse modo, o discurso constitucional é visto sobretudo como um veículo de legitimação do direito, exigindo a aplicação do método hermenêutico considerado mais apropriado. Contudo, essa abordagem funcionalista não encerra todas as possibilidades. Jacques Derrida, em Force de loi : le fondement mystique de l’autorité, recupera uma intuição já formulada por Montaigne (Ensaios, livro III) e retomada por Pascal (Pensamentos): a linguagem jurídica serve, antes de tudo, como instrumento para legitimar o poder. Ambos identificam nas leis um “fundamento místico da autoridade”; elas permanecem vigentes “não porque sejam justas, mas porque são leis”, sendo que o núcleo da justiça deve ser procurado não na autoridade do legislador, e sim na conveniência do soberano.
Bourdieu estabelece ainda um elo sugestivo entre a leitura de Derrida e a teoria de Austin. A seu ver, o direito funciona como o sképtron que, nos poemas homéricos, é entregue ao orador no instante em que este vai falar. A noção vem de Émile Benveniste, que em Le vocabulaire des institutions indo-européennes descreve o sképtron como atributo de reis, arautos, mensageiros e juízes, personagens que, por ofício ou ocasião, concentram autoridade. O orador recebe o cetro justamente para legitimar sua voz. Em essência, trata-se do bastão do emissário ou viajante: um sinal que identifica quem o empunha e o vincula às figuras do “poder-personagem”. O sképtron reúne, assim, as condições de felicidade que permitem aos detentores de poder exercer sua autoridade. Configura também um discurso de poder que funda a legislação, um sistema no qual só aqueles que possuem a palavra detêm direitos, enquanto os demais experimentam a coerção da linguagem jurídica, como observa Roland Barthes em sua Leçon. Para Foucault, na aula inaugural L’Ordre du discours (2 de dezembro de 1970), ele representa um sistema complexo de restrições que regula o acesso às possibilidades de enunciação.
Danièle Lochak, em Le droit, discours de pouvoir, captura esse espírito ao afirmar que o direito se faz palavra e que toda palavra se vincula ao poder. Só se expressa quem detém autoridade: fala para ser ouvido, acreditado e obedecido, reivindicando o monopólio da linguagem legítima. Inversamente, falar pressupõe possuir o poder de falar e, portanto, poder em sentido pleno: tomar a palavra já significa ter o direito à voz e a aptidão de exercê-la.
Os elementos ora apresentados acerca da conexão entre direito e palavra permitem reconfigurar a leitura da linguagem constitucional. Em vez de nos limitarmos a uma ontologia do Sollen, que busca justificar a existência das normas constitucionais por meio de sua relação externa com normas inferiores, passamos, a luz de de uma teoria da linguagem, a considerar também uma ontologia do Sein, em que os atos de fala constitutivos do arcabouço normativo funcionam como instâncias de legitimação do poder. Neste ponto, torna-se possível avançar uma definição preliminar mais acurada do objeto de estudo: a Constituição será entendida como linguagem, isto é, como um conjunto de enunciados performativos que estruturam as relações de poder. Por conseguinte, pode-se descrever sua forma e seu objeto mediante uma démarche empírica voltada a reconstruir pragmaticamente as modalidades de compreensão comunicacional do direito constitucional.
Essa definição permanece, por ora, provisória. Adotar um método empírico exige, em primeiro lugar, circunscrever o corpus de textos constitucionais a ser examinado; em segundo lugar, o vínculo com o (neo)pragmatismo impõe explicitar a metodologia empregada na análise desses textos. Torna-se, portanto, necessário assinalar também os contornos dessa investigação. Todo estudo que se proponha a refletir sobre a ideia de discurso constitucional não pode dispensar as precisões propedêuticas relativas ao significado atribuído à linguagem da Constituição.
Propõe-se que os discursos constitucionais sejam analisados sem partir da linguagem jurisdicional empregada pelos magistrados em suas funções interpretativas, nem sejam equiparados aos pronunciamentos doutrinários de juristas dedicados à exegese normativa ou à jurisprudência. Nesta tese, esses discursos serão associados à voz do constituinte, isto é, às intervenções de qualquer pessoa investida do poder de redigir a Constituição ou convidada a colaborar em sua elaboração. A autoridade constituinte (ou, mais precisamente, o constituinte) será entendida em sentido amplo, englobando não apenas os representantes eleitos das assembleias incumbidas de elaborar ou revisar a norma fundamental, mas também parlamentares, especialistas convocados para esclarecer pontos específicos do texto, o Chefe de Estado que intervém em diferentes fases do procedimento e os membros do Governo legitimados a defender os interesses do Executivo antes da adoção das novas disposições.
Decide-se relegar a distinção tradicional entre poder constituinte originário e poder constituinte derivado a um papel secundário, pois o foco estará sobretudo na forma e no conteúdo dos discursos constitucionais, e não nas questões procedimentais. Assim, a expressão “linguagem constitucional” abrangerá, sem distinção, tanto os debates travados pelos constituintes reunidos ex ante para elaborar um novo texto quanto as discussões dos constituintes convocados ex post para alterar a Constituição em vigor.
II. A Constituição, nada além da Constituição, toda a Constituição
A frase atribuída a Mitterrand, que encabeça esta seção, é amplamente conhecida entre os constitucionalistas e pode servir de fio condutor para delimitar nosso exame da linguagem normativa. A tarefa, contudo, continua delicada, pois ainda é preciso demonstrar porque seria pertinente privilegiar a análise dos discursos constitucionais em vez de outros debates sobre as normas. Riccardo Guastini, Guillaume Tusseau e Klaus Günther, cada qual por razões distintas, já se confrontaram com essa mesma dificuldade. Iniciaremos, portanto, submetendo suas abordagens a um exame crítico, para depois adotar a justificativa proposta por Günther.
Examinando os vários níveis das hierarquias normativas, Riccardo Guastini observa que a Constituição, diferentemente da lei, pode ser encarada como uma metalinguagem, isto é, uma meta-norma que organiza toda a produção jurídica. Sua missão central consiste em estabelecer regras de alcance geral e definir o respectivo campo de aplicação. O próprio Guastini, porém, reconhece que esse olhar metalinguístico não é exclusividade da Constituição: ele pode ser estendido, com as devidas adaptações, à relação entre a lei e as normas infralegais. Nesse sentido, a lei também funcionaria como meta-norma em relação aos regulamentos administrativos, cuja validade depende de respeitar o quadro legislativo. Assim, Constituição e lei acabam exercendo a mesma função orientar a criação de normas inferiores, de modo que a distinção entre ambas se reduz, em grande parte, a uma diferença de grau.
Na tese Les normes d’habilitation, Guillaume Tusseau aborda a questão sob outro ângulo. Para ele, normas de habilitação são todos os enunciados jurídicos que conferem a um agente a capacidade de criar uma norma. Esses enunciados, porém, assumem formatos variados e não se limitam ao texto constitucional; do mesmo modo, nem toda disposição da Constituição corresponde, ipso facto, a uma norma habilitante. Esse duplo reconhecimento impede que se reduza a linguagem constitucional a um simples ato de vontade voltado a emitir normas habilitadoras para estruturar a ordem jurídica. É necessário, portanto, buscar em outro âmbito as razões de sua especificidade.
O argumento mais convincente é articulado por Karl Günther em Justification et application universalisables de la norme en droit et en morale. Inspirando-se na metáfora visual desenvolvida por Karl Engisch em Logische Studien zur Gesetzesanwendung, Günther destaca as particularidades do texto constitucional. Para Engisch, no momento da subsunção, as normas constitucionais impõem um movimento de vaivém do olhar entre a premissa maior do raciocínio jurídico e os fatos da realidade concreta. Günther conclui, assim, que a Constituição funciona como pano de fundo normativo para a interpretação das demais regras jurídicas. Diferentemente de Riccardo Guastini ou Guillaume Tusseau, ele não a concebe como uma metalinguagem nem como um simples conjunto de enunciados habilitantes cujo conteúdo semântico bastaria para validar as normas subordinadas. Seguindo a linha de Neil MacCormick e Aulis Aarnio, entende-a antes como a representação de formas de vida que fundamentam escolhas racionais. Dessa forma, o discurso constitucional se distingue daquele das leis e regulamentos: ele institui um estado de coisas jurídico que serve de base à elaboração e à interpretação das normas inferiores, ao passo que os demais discursos se limitam a aplicar essas regras de referência.
Com essa perspectiva, Günther realça o caráter singular do discurso constitucional, legitimando seu exame autônomo. Contudo, como observa Aarnio, ele admite que, sem regras processuais apropriadas, a vasta diversidade dos mundos da vida inviabiliza o pano de fundo necessário à estabilidade do ordenamento jurídico, distinção essa que separa a função fundacional (constitucional) da função aplicativa (legal ou regulamentar). Esse impasse pode, muito provavelmente, ser superado por meio das ferramentas oferecidas pela teoria da ação comunicativa de Jürgen Habermas.
III. Razão comunicativa e discurso prático
Em 1967, cinco anos depois de defender a tese L’espace public, Jürgen Habermas enuncia, no prefácio de Logique des sciences sociales, a intuição que guiaria sua reflexão nas duas décadas seguintes: a convicção de que fundamentar as ciências sociais numa teoria da linguagem pode esclarecer os problemas centrais ligados à lógica da pesquisa. Alimentado por essa certeza, ele publica, em 1981, Théorie de l’agir communicationnel, obra na qual investiga se é possível oferecer aos indivíduos meios para solucionar questões práticas por meio de uma razão sustentada na comunicação. Além disso, o livro busca instaurar uma teoria da sociedade apta a justificar seus próprios parâmetros críticos, viés justificativo que levará o autor a explorar a aplicação dessa abordagem na fundamentação de decisões jurídicas.
A obra Faktizität und Geltung, lançada em 1992 e publicada em francês sob o título Droit et démocratie, retoma e aprofunda esse programa. Habermas sustenta que as teses centrais da teoria do agir comunicativo só se realizam plenamente quando são projetadas em uma constelação de múltiplos campos discursivos, nos quais precisam confirmar suas premissas em contextos argumentativos concretos. Nesse sentido, o discurso jurídico aparece, para ele, como um terreno privilegiado para demonstrar que a razão comunicativa representa um instrumento idôneo tanto para a elaboração quanto para a legitimação das normas.
Logo no primeiro capítulo de Le discours philosophique de la modernité, Habermas lança a pergunta: seria possível extrair da subjetividade e da autoconsciência critérios herdados da modernidade que nos ajudem a orientar-nos nesse próprio mundo? Kant responde afirmativamente em sua Crítica da Razão Prática: a razão, tomada num sentido monológico de racionalidade individual, bastaria para determinar a vontade e permitir a formulação de princípios práticos, proposições que encerram uma determinação geral da vontade a que se subordinam diferentes regras de conduta. Habermas, porém, adota posição mais cautelosa. Embora partilhe o otimismo kantiano quanto à possibilidade de derivar princípios práticos por meio da razão, ele desconfia da unilateralidade de um pensamento puramente subjetivo. A razão prática kantiana é, sem dúvida, capaz de corroer a religião e fomentar uma cultura de liberdade subjetiva e reflexão, mas, aos olhos de Habermas, essa concepção de racionalidade não assegura, por si só, a substituição sistemática do papel unificador da religião. É, portanto, no âmbito do debate, no diálogo discursivo, que se encontram as garantias necessárias para validar juízos razoáveis.
a. O racionalismo monológico em Kant e teoria da linguagem
Habermas defende que a formulação de condutas racionais está indissociada da linguagem, pois é por meio dela que se constrói um entendimento comum acerca de regras objetivas. Kant, ao contrário, sustenta que a validade dessas condutas pode ser determinada pelos próprios indivíduos, valendo-se de um uso monológico da razão. A seguir, expõe-se os argumentos kantianos que fundamentam sua filosofia da razão prática e, posteriormente, apresentar-se-á uma crítica a esses argumentos à luz dos instrumentos da teoria da linguagem.
Na acepção delineada na Crítica da Razão Prática, Kant sustenta que as leis práticas dizem respeito unicamente à vontade, independentemente dos efeitos produzidos por sua causalidade; por isso, é possível abstrair esses efeitos e considerar tais leis em estado puro. Para que uma regra possua validade objetiva e universal, a vontade individual deve ser resguardada de todas as contingências subjetivas e fortuitas que possam obscurecer o uso da razão. Em termos simples, a correção de uma norma de conduta depende de o sujeito poder desejar que ela se converta, para todos, em princípio universal - ideia que constitui o núcleo do imperativo categórico kantiano. Interessa-nos agora examinar as razões que levaram Kant a essa formulação.
Para legitimar essa forma de agir, Kant procura um princípio geral e transcendente que, tal como entre os utilitaristas, corresponde ao amor-próprio e à busca da felicidade individual. Reconhece-se um ser racional justamente por sua aptidão para adotar a felicidade como critério supremo que orienta suas escolhas. Quem conduz a própria existência visando alcançar a maior felicidade possível pauta-se pelo princípio do amor-de-si. Somente nessa perspectiva é plausível desejar, de maneira razoável, que tal comportamento se converta em regra universal.
Contudo, faz-se necessário advertir que nem toda conduta inspirada pelo amor de si é racional. Kant distingue os comportamentos de philautia, motivados pela benevolência para consigo mesmo, daqueles da arrogantia, movidos pela autossatisfação. Apenas o primeiro tipo de comportamento constitui, para ele, condutas individualmente racionais, pois respeita as restrições da lei moral. O segundo, ao contrário, não é racional, visto que o sujeito não quer que sua própria máxima se erija em legisladora. Cumpre advertir, contudo, que nem todo ato guiado pelo amor-próprio é, ipso facto, racional. Kant distingue as condutas de philautia, nascidas da benevolência para consigo mesmo, das de arrogantia, motivadas pela autossatisfação. Somente o primeiro tipo representa, para ele, um comportamento racional, pois se conforma às exigências da lei moral; o segundo, em contrapartida, não o é, já que o agente não pretende que a própria máxima valha como lei universal.
Fica, entretanto, a lacuna: essa distinção não esclarece como os indivíduos fundamentam as leis morais da razão pura sobre as quais edificam sua prática, nem como realizam os juízos necessários para orientar uma ação justa. É nesse ponto que a leitura monológica da razão prática revela seus limites. A questão seguinte, portanto, é saber se a teoria habermasiana da linguagem pode superar tais aporias.
Resta, porém, que essa distinção não explica como os indivíduos conseguem fundamentar as leis morais da razão pura sobre as quais edificam suas atividades práticas. Além disso, não permite entender como cada pessoa realiza os arbitramentos necessários para orientar uma conduta justa. A leitura monológica da razão prática encontra, aqui, seus limites. A próxima pergunta que se deve responder é se a teoria habermasiana da linguagem é capaz de superar tais aporias.
Para criticar a postura do racionalismo monológico kantiano, Habermas, em Droit et démocratie, parte da observação segundo a qual os pensamentos se articulam sob a forma de proposições. Compete à estrutura das proposições captar a estrutura dos pensamentos. As proposições linguísticas encarnam, nesse prisma, o único meio válido de indagar a validade de um pensamento. Desse modo, a verdade já não se busca no foro íntimo dos juízos autorreferenciais, mas sim na comunicação de ideias e percepções suscetíveis de verificação.
Essa forma de avaliação por meio do diálogo supõe, em linhas gerais, o reconhecimento de universalidades semânticas; isto é, o debate se fundamenta num acordo prévio acerca do significado de um estado de coisas. Sob uma ótica platônica, o enunciado “o balão é vermelho” não expressa simplesmente a representação subjetiva de um balão vermelho, mas afirma antes o fato de que esse balão é vermelho. Nesse caso, o locutor não questiona a verdade relativa à essência do objeto: parte do pressuposto de que, no mundo das formas, existe ao menos um balão cujo caráter vermelho foi estabelecido, e essa ideia basta para discutir a validade da proposição segundo a qual o objeto observado é um balão vermelho.
Habermas, entretanto, fica constrangido diante dessa concepção: ele não vê como justificar o ideal de uma universalidade semântica segundo a qual a linguagem conferiria uma realidade transcendente ao conjunto das coisas observáveis. Prefere, por isso, postular a existência de uma idealidade ligada ao “valor de verdade”.
Habermas afirma que o real é aquilo que se deixa representar por enunciados verdadeiros; “verdadeiro”, por sua vez, aparece na pretensão que um falante dirige ao outro quando profere uma proposição. Ao formular uma asserção, o sujeito apresenta uma reivindicação que pode ser criticada quanto à sua validade; contudo, como não dispomos de acesso direto a condições de validade que escapem a qualquer interpretação, convém compreender “validade”, em sentido epistêmico, como “validade que nos parece justificada”.
Desse modo, o juízo emitido acerca de algo não é racional porque haveria um estado ideal de coisas a servir de comparação nem porque a razão pudesse ser aplicada de forma puramente monológica; ele só adquire caráter genuinamente racional se houver um entendimento prévio entre os interlocutores sobre as premissas que fundamentam a pretensão de verdade de cada um. Impõe-se, portanto, investigar de que maneira a filosofia da linguagem pode contribuir para uma reconstrução comunicativa da racionalidade.
IV. O racionalismo discursivo em Habermas
Habermas encontrou, muito provavelmente, em Charles S. Peirce o argumento mais convincente a favor de uma racionalidade ancorada na linguagem. Para Peirce, o real é aquilo a que o processo coletivo de investigação e raciocínio acabará chegando, sendo, por isso mesmo, independente de quaisquer caprichos individuais. Como se lê em Droit et démocratie, o real resulta de um consenso alcançado por meio da troca de informações entre os membros de uma comunidade que recorre à razão para construir o conjunto de saberes necessários a uma condução ideal da vida. Tanto para Habermas (Théorie de l’agir communicationnel I) quanto para Peirce, a verdade não reside na mera factualidade dos objetos observáveis, mas no sentido dos atos de fala que os descrevem.
Daí decorre que a verdade contingente do mundo só pode emergir do exame dos intercâmbios linguísticos partilhados por todos os integrantes de uma comunidade de fala, ao formularem descrições de ideias, objetos e eventos. Habermas pergunta, então, como apreender esses intercâmbios de modo a chegar a uma definição tão justa quanto possível da razão comunicativa. Nos três tópicos a seguir, explicaremos por que, para essa tarefa, o recurso à abordagem fundadora de Gottlob Frege se mostra mais promissor do que a teoria linguística mais recente de Karl Bühler ou a sintaxe lógica de Rudolf Carnap.
a. A teoria da linguagem de Karl Bühler
Em 1934, o psicólogo alemão Karl Bühler lança Sprachtheorie, obra em que propõe uma leitura semântica dos fenômenos linguísticos. Para ele, o signo verbal pode ser entendido de três modos simultâneos: i) como símbolo, pela sua correspondência (na tradução francesa de Jean-Marc Ferry para Théorie de l’agir communicationnel I) ou assignação (na versão francesa de Didier Samain de Sprachtheorie) a objetos e estados de coisas; ii) como sintoma, porque depende do emissor, cuja interioridade é expressada; iii) porque dirige um apelo ao ouvinte, orientando o seu comportamento, interno ou externo, como qualquer outro elemento de um sistema de comunicação.
A língua, portanto, é concebida por Bühler como fenômeno sonoro que fornece ao falante imagens acústicas capazes de: representar um objeto (função simbólica); expressar experiências internas (função sintomática); ou solicitar determinada conduta do interlocutor (função sinalizadora). Segundo Théorie du langage. La fonction représentationnelle de Bühler, esses esquemas permitiriam construir um léxico dos sinais, a partir do qual seria possível analisar cientificamente as implicações semânticas das interações verbais.
Essa perspectiva, entretanto, enfrenta críticas. Em sua tese La linguistique de Karl Bühler, Sandrine Persyn-Vialard aponta um ponto cego da teoria: a dificuldade de contemplar usos poéticos da linguagem que desviam o sentido original dos termos. Além disso, a classificação funcional sugerida por Bühler careceria de precisão, pois uma mesma expressão pode assumir funções diferentes conforme o contexto. O exemplo de “le cheval” ilustra o problema: a palavra pode atuar simultaneamente como símbolo representativo da espécie e como sinal que designa “um exemplar concreto” visível ao interlocutor. Diante disso, torna-se pouco viável esperar uma sistematização estrita dos atos de fala.
Habermas apresenta mais uma objeção. Segundo ele, Bühler concentra-se no significado dos signos tomados isoladamente, sem levar em conta o conteúdo das frases que conectam a linguagem ao mundo. Ao privilegiar a análise formal da racionalidade das expressões trocadas entre locutor e ouvinte, essa teoria do significado deixa de lado qualquer compreensão externa dos atos de fala. Embora a abordagem de Bühler permita detectar divergências nas pretensões de validade presentes em cada proposição, ela dificilmente consegue articular as condutas dos interlocutores em torno dos sinais fônicos que circulam na interação. É justamente nesse ponto, observa Habermas, que o aporte de Carnap se torna decisivo, pois fornece as ferramentas necessárias para superar essa lacuna.
b. A sintaxe lógica de Rudolph Carnap
A concepção de linguagem de Carnap diverge da análise semântica de Bühler ao adotar uma abordagem sintática dos atos de fala. Para Carnap, um signo só detém significado quando se relaciona a objetos ou estados de coisas; contudo, investigar o signo não equivale a investigar a coisa em si. É preciso distinguir uma ciência das formas de uma ciência dos objetos. Logo no primeiro parágrafo de The Logical Syntax of Language, ele explica que, ao falar em “sintaxe lógica da linguagem”, refere-se à teoria das formas linguísticas — a exposição sistemática das regras formais que regulam seu uso e as consequências daí derivadas.
Segundo Charles Serrus (La syntaxe logique de Rudolf Carnap), o objetivo de Carnap é separar a ciência do real, voltada aos objetos, de uma ciência formal dedicada ao estudo das proposições linguísticas que descrevem esse real. “Na lógica não há moral”, declara Carnap: cada um é livre para construir sua própria lógica, isto é, a forma de linguagem que melhor lhe convier. Exige-se apenas que, para dialogar, o interlocutor apresente o método adotado e explicite suas regras sintáticas, em vez de recorrer a argumentos filosóficos.
À primeira vista, essa linha de reflexão parece promissora: ao analisar unicamente as formas da linguagem, evita-se a armadilha de uma universalidade semântica de matriz platônica que compromete outras tentativas de descrever o real. Contudo, surge uma segunda dificuldade apontada por Alberto Coffa, citado por Jacques Bouveresse em Essais VII. Les lumières des positivistes. Segundo Coffa, Carnap, “na verdade, permanece atolado no pântano”.
De acordo com a sintaxe lógica, um matemático estaria livre para rejeitar, por exemplo, o axioma multiplicativo; ao fazê-lo, não estaria refutando um fato, mas apenas instituindo uma nova convenção linguística pela qual “multiplicar” passaria a significar algo diverso do produto de dois números. Ocorre que supor a existência de convenções matemáticas é incorrer num erro lógico: trata-se de introduzir um dado factual onde haveria apenas escolhas linguísticas. Coffa denomina essa falha “factualismo semântico de segundo nível”. A suposição de que existe um fato objetivo que distingue o momento em que criamos a maquinaria semântica necessária à comunicação daquele em que, efetivamente, comunicamos.
Habermas percebe esse impasse e reconhece que Carnap não chegou a formular um sistema geral de regras, pragmaticamente reconstruíveis, que servissem de base a uma investigação comunicativa da verdade. Por isso, volta-se aos escritos de Gottlob Frege.
c. Retorno ao giro linguístico de Gottlob Frege
A teoria do significado somente se firmará como ciência formal quando realizar a transição de uma semântica referencial para uma semântica da verdade, ambição que Habermas atribui ao alicerce de sua teoria do agir comunicativo. A verdade não deve ser buscada na simples enunciação de proposições referentes à essência dos entes observáveis, e sim em assertivas linguisticamente formuladas de modo racional para descrever um estado de coisas. Consciente dos limites epistemológicos das propostas de Carnap e Bühler, que se mostram incapazes de fornecer um critério robusto para avaliar a validade dessas assertivas, Habermas decide retomar o giro linguístico de Frege a fim de reconstruir um modelo discursivo de investigação da verdade.
“Que é um fato?”, indaga Frege em seus Escritos Lógicos e Filosóficos. Responde ele: um fato é um pensamento verdadeiro. A expressão desses pensamentos precisa, portanto, refletir a relação com o mundo que o sujeito considera verdadeira. Resta, porém, esclarecer o que Frege entende por “pensamento”. Para ele, o pensamento não pertence nem ao mundo interior das representações subjetivas dos objetos e coisas, nem ao mundo exterior das experiências sensíveis, cujo caráter universal não pode ser verificado. O pensamento situa-se, antes, naquele conteúdo que o sujeito apreende ao afirmar: “o que julgo verdadeiro, independentemente de minha adesão a esse juízo, não depende do simples ato de pensar”, mas sim do ato de apreender linguisticamente o fato de que se pensa algo.
Assim, para Habermas, é na comunicação que se delineiam as condições de aceitabilidade racional das pretensões de verdade formuladas durante um debate. Ele retoma, em Hilary Putnam (Reason, Truth and History), a ideia de aceitabilidade racional idealizada: uma coerência perfeita entre nossas crenças e nossas experiências. A troca linguística permite aos interlocutores adentrar o universo dos fatos sociais, utilizando a linguagem de modo pragmático, primeiro para chegar a um entendimento sobre determinado estado de coisas e, em seguida, para coordenar suas ações. Nesse quadro, a validade dos enunciados deixa de depender das análises semânticas dos signos (Bühler) ou de um consenso prévio sobre convenções sintáticas (Carnap); ela passa a basear-se na criação de uma situação ideal de fala que favoreça a busca cooperativa do argumento mais razoável, a partir do confronto das perspectivas subjetivas que os participantes mantêm sobre o mundo.
Assim, Habermas desenvolve uma teoria do agir comunicativo que supera os impasses da racionalidade monológica kantiana ao ancorar o juízo na discussão intersubjetiva e na possibilidade de reconstrução da razão. Contudo, à semelhança de Kant, ele sustenta que o uso vital da razão não se limita a descrever a ontologia dos fatos e das coisas; serve também para elaborar um quadro prescritivo destinado a regular as condutas sociais. Cumpre, pois, examinar agora de que maneira ele justifica a aplicabilidade de sua teoria às especificidades do discurso jurídico, tema do próximo texto: razão comunicativa e discurso jurídico.